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Quais são as adaptações Neurais ao Treinamento de Força?

Por Leonardo De Lucca, PhD em Ciências do Movimento Humano

As adaptações neurais ao treinamento de força são multifacetadas e envolvem mudanças nos níveis cortical, espinhal e periférico. Essas adaptações incluem aumento do recrutamento de unidades motoras, sincronização aprimorada, inibição neural reduzida e melhora da coordenação intermuscular.



Em quanto tempo elas ocorrem?


Essas mudanças ocorrem no início do processo de treinamento e são críticas para os ganhos iniciais de força antes que ocorra uma hipertrofia muscular significativa.

O treinamento resistido com pesos (TRP) produz ajustes crônicos bastante conhecidos como hipertrofia muscular e melhor recrutamento neuromuscular. A magnitude dessas alterações é proporcional à manipulação das variáveis de treino como volume, intensidade, velocidade de execução e densidade.

Até a década de 1980 acreditava-se que o desenvolvimento da força muscular era determinado somente pela área de secção transversa (AST). Assim, o TRP era utilizado com fins de aumento da hipertrofia muscular. No entanto, com a evolução da ciência aplicada ao TRP foi possível identificar componentes neurais no desenvolvimento da força.

As adaptações neurais ao treinamento de força envolvem mecanismos inibitórios e desinibitórios, assim como melhorias na coordenação intra e intermuscular. A desinibição neurofisiológica diz respeito a:

Órgãos Tendionsos de Golgi (OTG): São receptores sensoriais, localizados próximos à junção miotendínea, que são responáveis por um reflexo de inibição da contração muscular quando o músculo é submetido a tensão excessiva (cargas muito altas, sem o devido processo adaptativo prévio). Esse reflexo pode acontecer em razão de encurtamento ou alongamento passivo.

Células de Renshaw: Neurônios inibitórios conectivos que se encontram na medula espinhal, cujo papel é amortecer a taxa de disparo dos motoneurônios alfa, prevenindo o dano muscular derivado da contração tetânica.

Sinais Inibitórios Supraespinhais: Sinais inibitórios conscientes e inconscientes que são enviados pelo cérebro.


Principais adaptações neurais

1 - Coordenação intermuscular aprimorada: O sistema nervoso melhora a coordenação entre os músculos agonistas (motor primário), antagonistas (opostos) e sinergistas (suporte). Isso leva a padrões de movimento mais eficientes e à redução do desperdício de energia durante o movimento.

A coordenação intermuscular é a capacidade do sistema nervoso de coordenar os elos de ligação da cadeia cinética, tornando o gesto motor mais eficiente. 

À medida que o sistema nervoso aprende o gesto, menos unidades motoras são necessárias para mover a mesma carga, o que deixa mais unidades motoras disponíveis para serem recrutadas em cargas mais pesadas. 

Portanto, para aumentar o peso levantado em um determinado exercício a longo prazo, o treino de coordenação intermuscular (treinamento técnico) é essencial. No entanto, a coordenação intermuscular é muito específica do exercício, então a sua transferência para outros exercícios (incluindo os específicos da modelidade esportiva) é muito limitada. Mesmo assim, continua sendo a base para o desenvolvimento geral da força muscular.

2 - Coordenação intramuscular melhorada: A capacidade de coordenar a ativação das fibras musculares dentro de um único músculo melhora. Isso resulta em contrações mais sincronizadas e fortes. A coordenação intramuscular é a capacidade de sincronizar o recrutamento dos músculos que são ativados para realizar um movimento. Seus componentes são:

a) Sincronização: A capacidade de contrair unidades motoras simultaneamente ou com o mínimo possível de latência (atraso menor que cinco milisegundos). Milner-Brown et al. (1975) demonstrou que indivíduos treinados têm mais sincronização das unidades motoras comparados aos não-treinados.

b) Recrutamento: Capacidade de recrutar unidades motoras simultaneamente.

c) Taxa de Codificação: Capacidade de aumentar a taxa de disparo das unidades motoras para exercer força muscular o mais rápido possível.

d) Inibição Neural Reduzida: O sistema nervoso possui mecanismos de proteção (por exemplo, órgãos tendinosos de Golgi) que inibem a produção máxima de força para evitar lesões. O treinamento de força reduz essa inibição, permitindo maior produção de força. 

Carolan e Cafarelli (1992) demonstraram que o treinamento de força reduz a inibição neural, levando ao aumento da ativação muscular.

A melhora da coordenação intramuscular proporciona a transferência de um exercício para outro se os padrões de recrutamento neuromuscular são semelhantes. 

O treino de força com altas cargas (alto % de 1 Repetição Máxima) recruta muitas unidades motoras e pode proporcionar melhor execução de tarefas e nas habilidades esportivas específicas. 

Exemplos:

Agachamento >>>> Sprint na corrida
Arranco e Arremesso no Levantamento de Peso >>>>> Arremesso no Handebol

3 - Aumento da taxa de desenvolvimento de força

As adaptações neurais contribuem para o aumento da taxa de desenvolvimento de força (TDF) que é a capacidade de produzir força de forma rápida.

Aagaard et al. (2002) demonstraram que o treinamento de força melhora a TDF por meio do aumento dos impulsos nervosos e taxa de disparo das unidades motoras durante o exercício.

4 - Aumento da atividade eletromiográfica (EMG)
O treinamento de força aumenta a atividade EMG, refletindo maior impulso neural para os músculos.
Moritani e deVries (1979) descobriram que os ganhos iniciais de força estão associados ao aumento da atividade EMG, indicando adaptações neurais.

5 - Adaptações na medula espinhal e centros supraespinhais
O treinamento de força induz alterações no nível da medula espinhal (por exemplo, aumento da excitabilidade do motoneurônio) e nos níveis supraespinhais (por exemplo, aumento do impulso cortical).
Griffin e Cafarelli (2007) destacaram o papel das adaptações espinhais e supraespinhais no treinamento de força.

6 - Potenciação de Longo Prazo (LTP) e Plasticidade Sináptica

O treinamento de força pode induzir potenciação de longo prazo (PLP) e plasticidade sináptica no sistema nervoso, aumentando a eficiência das vias neurais.
Gruber et al. (2007) exploraram o papel da LTP nas adaptações neurais ao treinamento de força.

Efeito de educação cruzada como prova da adaptação neural

O treinamento de um membro isolado (um braço ou uma perna) pode levar a melhorias de força no membro contralateral não treinado devido a adaptações neurais no sistema nervoso central.

Linha do tempo das adaptações neurais

Fase inicial (08 semanas): As adaptações neurais determinam a maior parte dos ganhos de força durante os estágios iniciais do treinamento. Já há hipertrofia muscular funcional quando analisada por meio de procedimentos mais precisos como ressonância magnética e ultrassom, porém não é tão visivelmente aparemente.

Os ganhos de força são principalmente devidos ao recrutamento aprimorado da unidade motora, sincronização e inibição reduzida. Fase Posterior (8+ semanas): A hipertrofia (crescimento muscular) torna-se mais significativa, embora as adaptações neurais continuem a desempenhar um papel nos ganhos de força adicionais.

Fatores que influenciam as adaptações neurais

Intensidade do treinamento: Intensidades mais altas (por exemplo, cargas pesadas) são mais eficazes para estimular as adaptações neurais. Seleção de exercícios: Exercícios compostos e multiarticulares (por exemplo, agachamentos, levantamento terra) exigem maior coordenação neural e levam a adaptações mais significativas. Experiência de treinamento: Os iniciantes experimentam adaptações neurais rápidas, enquanto os trainees avançados requerem treinamento mais especializado para obter mais melhorias neurais. Especificidade: As adaptações neurais são específicas para os padrões de movimento e grupos musculares treinados.

Implicações práticas

Para iniciantes: Concentre-se em aprender a técnica adequada e aumentar progressivamente a carga para maximizar as adaptações neurais. Para avançados: adicionar movimentos com carga máxima ou perto da máxima e movimentos explosivos (por exemplo, saltos e levantamentos olímpicos) e estímulos de treinamento variados para continuar desafiando o sistema nervoso. Recuperação: O descanso e a recuperação adequados são essenciais, pois o sistema nervoso se estressa com o treinamento de alta intensidade.

Considerações finais

Em resumo, as adaptações neurais são a base dos ganhos de força, especialmente nos estágios iniciais do treinamento. Os ganhos neurais aumentam a capacidade do sistema nervoso de gerar força, coordenar ações musculares e otimizar a eficiência do movimento, levando a um melhor desempenho.


Prof. Dr. Leonardo De Lucca
Doutor em Ciências do Movimento Humano

Referências

Aagaard, P., Simonsen, E. B., Andersen, J. L., Magnusson, P., & Dyhre-Poulsen, P. (2002). Increased rate of force development and neural drive of human skeletal muscle following resistance training. Journal of Applied Physiology, 93(4), 1318-1326. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12235031/

Carolan, B., & Cafarelli, E. (1992). Adaptations in coactivation after isometric resistance training. Journal of Applied Physiology, 73(3), 911-917. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1400055/

Griffin, L., & Cafarelli, E. (2007). Resistance training: Cortical, spinal, and motor unit adaptations. Canadian Journal of Applied Physiology, 30(3), 328-340.  https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16129897/

Gruber, M., Linnamo, V., Strojnik, V., Rantalainen, T., & Avela, J. (2007). Excitability at the motoneuron pool and motor cortex is specifically modulated in lengthening compared to isometric contractions. Journal of Neurophysiology, 97(1), 335-343. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19193768/

Milner-Brown, H. S., Stein, R. B., & Yemm, R. (1975). The orderly recruitment of human motor units during voluntary isometric contractions. The Journal of Physiology, 230(2), 359-370. https://physoc.onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1113/jphysiol.1973.sp010192

Moritani, T., & deVries, H. A. (1979). Neural factors versus hypertrophy in the time course of muscle strength gain. American Journal of Physical Medicine, 58(3), 115-130. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/453338/



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